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Marca de luxo é ligada a trabalho degradante

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Comentário: A matéria abaixo é um reflexo nu e cru da terceirização, um processo pela qual as grandes empresas buscam mão-de-obra barata, precarizando as condições de trabalho – em alguns casos beirando a escravidão – para ampliar seus lucros.

O pior é que alguns setores empresariais, fortemente articulados no Congresso, querem legalizar esta prática criminosa através do PL 4330, impedindo que o Ministério do Trabalho consiga investigar e punir este tipo de empresa.

A ação dos fiscais do Ministério do Trabalho também é um exemplo claro da importância deste ministério para os trabalhadores. Não é à toa que os donos do capital, sobretudo o mais reacionário, vem bancando junto ao governo federal o desmonte deste ministério, tendo por objetivo a limitação da ação destes agentes públicos.

Uma fiscalização, realizada em junho em São Paulo, encontrou 28 bolivianos em condições de trabalho análogas à escravidão em três oficinas que confeccionavam roupas das grifes Le Lis Blanc e Bo.Bô (Bourgeois e Bohême).

As marcas pertencem à Restoque, grupo com 212 lojas no país e que encerrou o primeiro trimestre com receita líquida de R$ 195 milhões.

À Folha a empresa informou que não tem relação com as oficinas fiscalizadas.

Após blitz feita em 18 de junho em oficinas de costura clandestinas por força-tarefa do Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e Receita Federal, a grife foi autuada e pagou R$ 600 mil de indenização aos estrangeiros, a maior parte em situação irregular no país.

Cada trabalhador recebeu, em média, R$ 21 mil.

A empresa também recebeu 24 autos de infração pelas irregularidades cometidas. Osvalores das autuações ainda estão sendo calculados, mas apenas uma das multas (por práticas discriminatórias por origem ou raça) deve chegar a R$ 250 mil.

Trabalho análogo à escravidão é a submissão a condições degradantes, como jornadaexaustiva (acima de 12 horas), servidão por dívida e com riscos no ambiente de trabalho.

PRODUÇÃO EXCLUSIVA

Nove de cada dez peças fabricadas pelos 28 trabalhadores resgatados (18 homens e 10 mulheres) eram encomendadas pela Le Lis Blanc por meio de dois fornecedores intermediários: as confecções Pantolex e Recoleta (veja quadro na página 2).

As confecções intermediárias encomendavam as peças às oficinas e depois as entregavam prontas para a grife.

“Ficou evidente a dependência da empresa com o sistema de produção das oficinas e a responsabilidade do grupo”, diz o auditor fiscal Luís Alexandre Faria.

Sem carteira assinada, os costureiros faziam jornada de 12 a 14 horas em três oficinas na zona norte de São Paulo.

Eles trabalhavam e moravam nesses estabelecimentos considerados pelos fiscais em condições precárias de segurança e de higiene. Os cômodos eram separados por tapumes, e os banheiros, coletivos.

Alguns deles relataram que tinham de pedir permissão para deixar o local, apesar de terem a chave do portão e não ficarem trancados.

Cadernos de contabilidade mostram indícios de descontos de dívidas contraídas com os gerentes das oficinas para pagar o valor das passagens de vinda da Bolívia.

“Pegamos vales para pagar nossas contas e depois descontam nas faturas”, diz M., 37, que trabalha como costureiro há um ano. O salário é de R$ 800 a R$ 900, após o desconto até do wi-fi.

O gerente de uma das oficinas, H., diz que recebeu dos fornecedores de R$ 12 a R$ 15 por calça ou blazer costurado dependendo do grau de dificuldade, mas admite que apenas parte desse valor parte é repassada ao costureiros.

“Do valor de cada peça é tirado um terço para quem costura, um terço para o lucro e um terço para despesas de aluguel, água e comida.”

‘A gente não pode fazer nada’, diz gerente de oficina sobre preços das roupas


Há 16 anos no Brasil, o boliviano Z.G.C., 32, gerente de uma das oficinas interditadas diz que começou no ramo após trabalhar como “piloteiro” de um grande estilista brasileiro.

“Eu levava a peça piloto para as confecções terceirizadas. Era chamado de piloteiro no atelier, em Pinheiros. Montei até um site divulgando o meu trabalho no boca a boca. Tive muito trabalho,em confecções e outras oficinas. Depois de um tempo montei a minha e chamei meus conterrâneos para trabalhar”, diz Z..

Para ajudar os cinco trabalhadores que estão com ele na produção de peças para a grife Les Lis Blanc, emite vales e faz os descontos “aos poucos” dos colegas.

“Tem gente que precisa de um celular novo, ou comprar algo então não tem problema, parcelamos e ajudamos os costureiros”, afirma.

Dois dias antes da fiscalização, Z. diz ter rejeitado uma encomenda para fabricar um lote de peças para outra grife masculina. “Queriam me pagar R$ 7 por peça, é muito pouco. Porque desse valor ainda tem de dividir por três para pagar o costureiro. E ninguém mais aceita tão pouco.”

Seu maior orgulho, diz, foi ter assistido, durante uma edição do São Paulo Fashion Week, a modelo Gisele Bunchen desfilar uma jaqueta que havia sido costurada na oficina em que trabalhava. “Também vi a atriz Carolina Dieckmann com um blazer da grife para a qual eu costurei”.

“Cada pessoa tem seu talento, e esse é o meu desde os 16 anos, gosto de costurar”, diz. “Desde que estou no Brasil não gastei R$ 1 com bebida. Quero voltar a La Paz um dia, tudo isso para que meus pais sintam orgulho de mim”, diz Z.

Ao ver que a mesma calça que costurava em sua oficina por cerca de R$ 15 era vendida no site da grife Le Lis Blanc, no dia 18 de junho, por cerca de R$ 400, o costureiro foi categórico: “É um absurdo, mas a gente não pode fazer nada.”

Mais grifes de luxo são alvo de investigação

Para os fiscais que atuaram no resgaste dos profissionais em oficinas de costura, o que chama atenção é que o trabalho degradante se espalha entre empresas que ocupam espaço no mercado de luxo, e não se concentra apenas nas lojas de “fast fashion” e grande redes de departamento.

No Brasil, além da Le Lis Blanc, três grifes de luxo já estão na mira de auditores e procuradores do Trabalho. Os nomes são mantidos sob sigilo para não atrapalhar as investigações.

Neste ano, outras duas firmaram termo de ajustamento de conduta com o Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho para adequar sua produção.

O uso de mão de obra degradante não é privilégio do Brasil. Recentemente um grupo de grifes estrangeiras admitiu contratar trabalhadores em situação irregular em Bangladesh para terceirizar a produção e cortar custos.

INTERDIÇÃO

As oficinas fiscalizadas em junho foram interditadas por falta de segurança nas máquinas de costura (falta de protetores pode causar riscos de acidente de trabalho), ausência de extintores e risco de incêndio nas fiações aparentes.

Na estimativa da fiscalização, existem entre 8.000 e 10 mil oficinas na região da Grande São Paulo empregando cerca de 80 mil a 100 mil trabalhadores de países sul-americanos nas mesmas condições irregulares constatadas na ação fiscal de junho.

Segundo a Secretaria Municipal de Direitos Humanos de São Paulo, entre 100 mil e 200 mil bolivianos vivem na capital paulista, sendo somente 60 mil legalizados.

VIOLÊNCIA

Além das condições de trabalho, os fiscais dizem que as famílias que trabalham nas oficinas estão submetidas a riscos de violência.

“Elas são alvos fáceis de criminosos e ladrões. Os migrantes têm grandes dificuldades em abrir conta nos bancos e optam por manter o dinheiro guardado no próprio local de trabalho, por exemplo”, diz Renato Bignami, coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo em São Paulo.

“Já nos deparamos com situações de violência em virtude dessa dificuldade adicional nos próprios resgates”, afirma o auditor.

Dez dias após a fiscalização feita em oficinas de costura da cidade de São Paulo, o menino boliviano Brayan Yanarico Capcha, 5, foi morto com um tiro na cabeça em um assalto à casa da família, em São Mateus, na zona leste da capital.

A família dele foi assaltada quatro vezes nos seis meses no Brasil, segundo mostrou reportagem da Folha.

Não há estatísticas da Secretaria de Segurança Pública sobre assaltos à comunidade boliviana. Muitos trabalhadores estão irregulares no país e temem registrar queixa.

Fonte: Cláudia Roli – Folha de São Paulo

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